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Getúlio Vargas: Herói ou Vilão? Uma Análise Crítica do “Pai dos Pobres”

Em 24 de agosto de 1954, um tiro ecoou no Palácio do Catete, encerrando não apenas a vida de Getúlio Dornelles Vargas, mas também uma das eras mais controversas da história brasileira. O homem que se autoproclamou “pai dos pobres” deixava um legado repleto de contradições: modernizador autoritário, protetor dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, ditador implacável. Mas quem foi realmente Getúlio Vargas? E por que, mesmo décadas após sua morte, sua figura ainda divide opiniões e desperta paixões?

A trajetória de Vargas transcende a biografia individual para se tornar um espelho das próprias contradições brasileiras. Entre avanços sociais inegáveis e retrocessos democráticos alarmantes, o getulismo moldou o Brasil moderno de forma irreversível. Esta análise crítica pretende desvendar as camadas complexas de um personagem que, longe de ser um herói ou vilão unidimensional, representa a própria ambiguidade do processo de modernização brasileira.

O impacto de Getúlio Vargas na formação do Estado brasileiro contemporâneo é incontestável. Suas políticas econômicas, sociais e institucionais estabeleceram padrões que persistem até hoje, influenciando desde a estrutura sindical até os mecanismos de proteção social. No entanto, este legado não pode ser compreendido sem uma análise crítica dos métodos autoritários empregados e das consequências democráticas de suas ações.

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As Raízes do Futuro Ditador: Formação e Primeiros Passos Políticos

Origens Familiares e Influências Formativas

Getúlio Dornelles Vargas nasceu em 19 de abril de 1882, na cidade de São Borja, Rio Grande do Sul, filho de Manuel do Nascimento Vargas e Cândida Dornelles Vargas. A família Vargas possuía tradição política e militar na região, com o pai ocupando posições de destaque na política local e participando ativamente das conturbadas disputas políticas gaúchas do século XIX.

O ambiente familiar de Vargas foi profundamente marcado pela cultura política rio-grandense, caracterizada pelo caudilhismo, personalismo e uso da violência como instrumento político. Estas características, típicas da fronteira sul do Brasil, influenciariam decisivamente a formação política do futuro presidente. A própria Guerra dos Farrapos (1835-1845) havia deixado marcas profundas na região, criando uma tradição de desafio ao poder central e autonomia regional que se refletiria na postura política de Vargas.

Formação Jurídica e Primeiros Contatos com o Poder

A formação jurídica de Vargas na Faculdade de Direito de Porto Alegre revelou desde cedo suas ambições políticas. Durante os anos de estudo (1900-1907), destacou-se não apenas pelo desempenho acadêmico, mas principalmente pela habilidade de articulação política e construção de alianças. Estas características, que marcariam toda sua trajetória, já se manifestavam nos tempos de estudante.

O início de sua carreira jurídica coincidiu com o ingresso na política partidária. Como promotor público em Cachoeira do Sul, Vargas demonstrou uma notável capacidade de equilibrar diferentes interesses e mediar conflitos, habilidades que se revelariam cruciais em sua ascensão política posterior. Sua eleição para deputado estadual em 1909 marcou o início de uma carreira política que duraria mais de quatro décadas.

A Escola Política Gaúcha: Laboratório do Futuro Autoritarismo

O Rio Grande do Sul da primeira República oferecia um ambiente político único no Brasil. O domínio do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), sob a liderança de Júlio de Castilhos e posteriormente Borges de Medeiros, havia criado um sistema político altamente centralizado e autoritário, mas também moderno e eficiente em termos administrativos.

Vargas aprendeu neste ambiente a arte de combinar eficiência administrativa com controle político rígido. O positivismo castilhista, doutrina dominante no PRR, pregava a ordem como condição fundamental para o progresso, uma filosofia que Vargas internalizaria e posteriormente aplicaria em escala nacional. A máquina política gaúcha funcionava como um laboratório de técnicas de controle social e manipulação política que seriam reproduzidas durante o Estado Novo.

A Ascensão Nacional: Do Deputado Federal à Revolução de 1930

Deputado Federal: Aprendendo as Artes da Política Nacional

A eleição de Vargas para deputado federal em 1922 marcou sua entrada definitiva na política nacional. No Congresso Nacional, demonstrou sua característica habilidade de conciliação, posicionando-se como um político pragmático capaz de dialogar com diferentes correntes políticas. Esta postura moderada, no entanto, escondia ambições bem maiores.

Durante seu mandato federal, Vargas dedicou-se particularmente às questões econômicas e sociais, temas que considerava fundamentais para a modernização do país. Suas intervenções parlamentares revelavam uma compreensão sofisticada dos problemas nacionais e uma visão estratégica de longo prazo que impressionava seus pares. Já neste período, manifestava-se sua concepção autoritária de que as transformações necessárias ao país não poderiam ser realizadas através dos lentos processos democráticos tradicionais.

Ministro da Fazenda: Primeiras Experiências no Executivo Federal

A nomeação de Vargas para Ministro da Fazenda no governo Washington Luís (1926-1927) representou sua primeira experiência significativa no poder executivo federal. Embora o período tenha sido breve, foi fundamental para que compreendesse os mecanismos do poder central e identificasse as limitações estruturais do sistema político da República Velha.

Como ministro, Vargas enfrentou importantes desafios econômicos, incluindo questões relacionadas ao câmbio, política cafeeira e endividamento público. Suas soluções técnicas demonstravam competência administrativa, mas já revelavam sua preferência por medidas centralizadoras em detrimento de soluções negociadas com os estados e o Congresso. Esta experiência ministerial forneceu-lhe os conhecimentos técnicos e os contatos políticos que seriam cruciais na Revolução de 1930.

Governador do Rio Grande do Sul: Laboratório de Políticas Nacionais

O governo do Rio Grande do Sul (1928-1930) funcionou como verdadeiro laboratório das políticas que Vargas posteriormente implementaria em âmbito nacional. Durante este período, desenvolveu muitas das estratégias políticas e programas sociais que caracterizariam sua presidência.

A política trabalhista iniciada no Rio Grande do Sul incluía regulamentação das relações de trabalho, criação de órgãos de mediação entre patrões e empregados, e expansão dos serviços públicos de saúde e educação. Estas medidas, inovadoras para os padrões da época, serviam tanto para modernizar o estado quanto para ampliar a base de apoio político do governo.

Simultaneamente, Vargas promovia uma crescente centralização do poder estadual, reduzindo a autonomia municipal e concentrando decisões no governo estadual. Esta prática revelava sua concepção autoritária de administração pública, baseada na ideia de que a eficiência exigia concentração de poder nas mãos de lideranças técnica e politicamente competentes.

A Revolução de 1930: Ruptura Democrática Disfarçada de Modernização

As Origens da Crise: Café com Leite e Descontentamento Regional

A política do café com leite, que alternava a presidência entre São Paulo e Minas Gerais, havia funcionado relativamente bem durante as primeiras décadas da República, mas começou a mostrar sinais de desgaste no final dos anos 1920. O crescimento econômico de outros estados, particularmente Rio Grande do Sul e regiões do Nordeste, criava pressões por maior participação política e recursos federais.

A crise econômica mundial de 1929 agravou significativamente estas tensões. A queda dos preços do café afetou dramaticamente as finanças paulistas, enquanto a redução do comércio internacional prejudicava a economia nacional como um todo. Neste contexto de instabilidade econômica, as limitações do sistema político da República Velha tornaram-se mais evidentes.

A Aliança Liberal: Coalizão Oportunista ou Movimento Reformista?

A formação da Aliança Liberal em 1929, com Vargas como candidato à presidência e João Pessoa como vice, representou aparentemente uma alternativa democrática ao continuísmo da política dominante. O programa da Aliança incluía propostas de reforma política, legislação social, desenvolvimento econômico e moralização administrativa que pareciam responder às demandas de modernização do país.

Uma análise mais profunda, no entanto, revela que a Aliança Liberal constituía principalmente uma coalizão de oligarquias regionais descontentes com sua exclusão do poder central. Os interesses econômicos e ambições políticas de grupos dominantes em Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba eram mais relevantes do que qualquer compromisso democrático genuíno.

O próprio programa da Aliança Liberal, embora contivesse propostas progressistas, mantinha a estrutura oligárquica fundamental intocada. Não havia, por exemplo, qualquer menção significativa à reforma agrária, democratização efetiva do sistema político ou ampliação real da participação popular. As propostas de legislação social visavam principalmente cooptar os trabalhadores urbanos em crescimento, transformando-os em base de apoio para uma nova configuração de poder.

O Golpe de 1930: Violência Legitimada pela Retórica Modernizante

A derrota eleitoral da Aliança Liberal nas eleições presidenciais de março de 1930 não foi aceita pacificamente pelos seus líderes. Alegações de fraude eleitoral, embora não inteiramente infundadas dada a natureza das eleições na República Velha, serviram principalmente como pretexto para a insurreição armada que se seguiu.

O assassinato de João Pessoa em julho de 1930, embora relacionado a disputas políticas locais na Paraíba, foi habilmente explorado pela propaganda aliancista como símbolo da violência e corrupção do regime deposto. A romantização deste evento pela historiografia tradicional obscureceu o fato de que a Revolução de 1930 representou fundamentalmente uma ruptura da legalidade democrática em benefício de grupos políticos minoritários.

A vitória militar da revolução em outubro de 1930 foi possível graças ao apoio de setores militares descontentes, particularmente os tenentes, que há anos conspiravam contra o regime. A aliança entre oligarquias dissidentes e militares revolucionários criou uma coalizão instável que só se manteve unida enquanto persistiu o inimigo comum representado pela República Velha.

O Governo Provisório (1930-1937): Construindo as Bases do Autoritarismo

Desmontagem do Federalismo: Centralização como Modernização

Uma das primeiras e mais significativas medidas do Governo Provisório foi a nomeação de interventores federais para governar os estados, substituindo os governadores constitucionalmente eleitos. Esta medida, justificada como necessária para moralizar a administração pública e modernizar o país, representou na verdade um golpe mortal no federalismo brasileiro.

Os interventores, escolhidos pessoalmente por Vargas, funcionavam como extensões diretas do poder central, implementando políticas uniformes e eliminando resistências locais. Esta prática criou um precedente autoritário que se manteria durante todo o período Vargas e influenciaria profundamente a cultura política brasileira posterior.

A justificativa técnica para esta centralização – a necessidade de eficiência administrativa e combate à corrupção – mascarava uma concepção fundamentalmente antidemocrática de governança. A democracia, com seus mecanismos de controle e procedimentos de negociação, era vista como obstáculo à modernização necessária, não como valor fundamental a ser preservado.

A Questão Social: Cooptação Disfarçada de Proteção

A criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio em novembro de 1930, sob a direção de Lindolfo Collor, marcou o início da política social que se tornaria uma das características mais celebradas do governo Vargas. No entanto, uma análise crítica revela que esta política seguiu desde o início uma lógica corporativista que visava mais controlar do que empoderar os trabalhadores.

A legislação trabalhista implementada neste período foi diretamente inspirada no modelo fascista italiano, particularmente na Carta del Lavoro de Mussolini. O objetivo não era fortalecer a classe trabalhadora como ator político autônomo, mas sim integrar os trabalhadores em uma estrutura corporativa controlada pelo Estado, eliminando o conflito de classes através da colaboração forçada entre capital e trabalho.

As primeiras leis trabalhistas do período – regulamentação da jornada de trabalho, trabalho feminino e infantil, acidentes de trabalho – representaram avanços reais nas condições de vida dos trabalhadores urbanos. Porém, estes avanços vieram acompanhados de mecanismos de controle que subordinavam completamente o movimento sindical ao Estado. A sindicalização tornou-se obrigatória, os sindicatos recebiam recursos públicos em troca de apoio político, e a greve foi praticamente criminalizada.

Modernização Econômica e Intervencionismo Estatal

O Governo Provisório promoveu significativas transformações econômicas que estabeleceram as bases do capitalismo industrial brasileiro. A criação de órgãos reguladores, empresas estatais e mecanismos de intervenção na economia representou uma ruptura com o liberalismo da República Velha, mas também criou um padrão de desenvolvimento altamente dependente do Estado.

A política cafeeira foi reformulada através da criação do Conselho Nacional do Café e da política de valorização que incluía queima de estoques e controle da produção. Embora estas medidas tenham sido necessárias para enfrentar a crise internacional, estabeleceram um precedente de intervenção estatal sistemática na economia que se ampliaria progressivamente.

A industrialização começou a ser promovida através de políticas protecionistas, subsídios e investimentos públicos em infraestrutura. O Plano de Viação Nacional e outros projetos de desenvolvimento demonstravam uma visão estratégica de longo prazo, mas também concentravam poder de decisão nas mãos do governo federal, reduzindo o espaço para iniciativa privada e participação regional.

Repressão e Controle: Os Instrumentos do Poder

Paralelamente às reformas modernizadoras, o Governo Provisório construiu um sofisticado aparato de repressão que seria aperfeiçoado durante o Estado Novo. A polícia política, inicialmente organizada de forma improvisada, foi gradualmente profissionalizada e centralizada, tornando-se um instrumento eficaz de controle social.

A censura à imprensa, embora menos sistemática do que seria posteriormente, já se manifestava através de pressões diretas sobre jornais e jornalistas críticos ao governo. A propaganda oficial, coordenada pelo Departamento Oficial de Publicidade, começou a moldar a opinião pública através de técnicas modernas de comunicação de massa.

O Código Eleitoral de 1932, embora tenha representado avanços importantes como o voto secreto e a justiça eleitoral, manteve restrições significativas à participação política. O voto feminino, conquista celebrada, vinha acompanhado de limitações que reduziam seu impacto real. As eleições continuavam sendo eventos controlados pelas elites políticas, não expressões genuínas da vontade popular.

A Era Constitucional (1934-1937): Democracia Tutelada e Preparação do Golpe

A Constituição de 1934: Avanços Democráticos com Limitações Autoritárias

A promulgação da Constituição de 1934 marcou aparentemente o retorno à normalidade democrática após quatro anos de governo discricionário. A nova Carta Magna incorporou importantes conquistas sociais e mecanismos democráticos que pareciam consolidar o estado de direito no país.

Os direitos sociais consagrados na Constituição – proteção ao trabalho, educação pública, assistência social – representaram avanços significativos em relação à Constituição de 1891. A ampliação do sufrágio, incluindo o voto feminino e a redução da idade eleitoral, aparentemente democratizava o sistema político.

No entanto, uma análise mais cuidadosa revela que a Constituição de 1934 mantinha dispositivos que concentravam poder nas mãos do Executivo e limitavam a autonomia dos demais poderes. O presidente mantinha amplos poderes de intervenção nos estados, controle sobre as forças armadas e capacidade de legislar por decreto em situações de emergência.

O sistema eleitoral, embora mais democrático em termos formais, continuava favorecendo as elites urbanas e excluindo amplamente a população rural, que representava a maioria dos brasileiros. A representação profissional no Congresso, inspirada no corporativismo fascista, criava um canal alternativo de influência política que bypassava os mecanismos democráticos tradicionais.

Radicalização Política: Integralistas, Comunistas e o Jogo do Centro

O período constitucional foi marcado pela crescente polarização entre movimentos políticos extremistas de direita e esquerda, uma situação que Vargas soube explorar com maestria política. A Ação Integralista Brasileira (AIB), liderada por Plínio Salgado, e a Aliança Nacional Libertadora (ANL), influenciada pelo Partido Comunista, representavam alternativas radicais ao liberalismo democrático.

O integralismo, movimento fascista brasileiro, defendia um Estado corporativo, nacionalismo extremo e autoritarismo baseado em valores tradicionais e religiosos. Sua organização paramilitar, rituais de massa e propaganda seguiam diretamente o modelo fascista europeu, adaptado às condições brasileiras.

A ANL, por sua vez, propunha uma revolução popular anti-imperialista que estabeleceria um governo revolucionário capaz de promover reformas estruturais profundas na sociedade brasileira. Embora defendesse bandeiras democráticas, sua vinculação ao movimento comunista internacional e métodos conspirativos a colocavam em conflito com a ordem constitucional.

Vargas posicionou-se habilmente como defensor da democracia contra os extremismos, mas na verdade manipulou esta polarização para justificar medidas autoritárias crescentes. A estratégia consistia em permitir que os movimentos extremistas se desenvolvessem até o ponto em que sua ameaça justificasse a suspensão das liberdades democráticas.

A Intentona Comunista: Pretexto para o Autoritarismo

A revolta comunista de novembro de 1935, conhecida como Intentona Comunista, forneceu a Vargas o pretexto perfeito para a implementação de medidas de exceção que gradualmente minaram as bases democráticas do regime constitucional.

O movimento insurrecional, liderado por Luís Carlos Prestes e outros dirigentes do PCB, foi rapidamente derrotado pelas forças governamentais, demonstrando sua fragilidade organizativa e desconexão com a realidade política brasileira. No entanto, sua repressão foi utilizada para justificar uma escalada autoritária desproporcional à ameaça real representada.

O estado de sítio decretado após a revolta foi sistematicamente renovado, criando um ambiente de permanente excepcionalidade que naturalizou práticas autoritárias. A Lei de Segurança Nacional de 1935 estabeleceu as bases legais para a perseguição política, censura e controle social que seriam amplamente utilizados nos anos seguintes.

A repressão aos comunistas foi acompanhada de uma ampla campanha de propaganda anticomunista que associava qualquer oposição ao governo à ameaça revolucionária. Esta estratégia foi extremamente eficaz em mobilizar setores conservadores da sociedade em apoio às medidas autoritárias, criando um consenso em torno da necessidade de ordem e segurança.

Preparando o Golpe: A Erosão Gradual da Democracia

Os anos de 1936 e 1937 foram marcados pela erosão sistemática das instituições democráticas através de medidas aparentemente legais que concentravam poder nas mãos do Executivo. Este processo gradual foi mais eficaz do que um golpe súbito porque evitou reações organizadas da oposição e acostumou a opinião pública com práticas autoritárias.

A renovação constante do estado de sítio, a ampliação dos poderes policiais, o controle crescente sobre a imprensa e a interferência nas eleições estaduais criaram um ambiente político incompatível com o funcionamento democrático. O Congresso, embora formalmente mantido, foi progressivamente esvaziado de suas funções legislativas e fiscalizadoras.

A campanha eleitoral para a sucessão presidencial de 1938 tornou-se o pretexto final para o golpe. Vargas, constitucionalmente impedido de se reeleger, enfrentava a perspectiva de perder o poder para candidatos que poderiam reverter suas políticas e investigar os atos de seu governo.

O Estado Novo (1937-1945): Ditadura Modernizadora

O Golpe de 1937: Institucionalização do Autoritarismo

O golpe de 10 de novembro de 1937 representou a culminação lógica das tendências autoritárias que vinham se desenvolvendo desde 1930. O Plano Cohen, documento forjado pelo capitão Olímpio Mourão Filho que supostamente revelava uma conspiração comunista para tomar o poder, foi utilizado como justificativa para o fechamento do Congresso e a implantação da ditadura.

A facilidade com que o golpe foi executado demonstrava o grau de erosão das instituições democráticas durante o período constitucional. A ausência de resistência significativa por parte do Congresso, partidos políticos ou sociedade civil revelava o sucesso da estratégia de desmoralização da democracia implementada nos anos anteriores.

A Constituição de 1937, apelidada de “Polaca” devido às suas semelhanças com a constituição autoritária da Polônia, estabeleceu formalmente um regime corporativista e centralizado. O texto constitucional concentrava poderes extraordinários nas mãos do presidente, eliminava o federalismo, suprimia direitos individuais fundamentais e criava um sistema político baseado na representação corporativa em lugar da representação democrática.

A Máquina de Propaganda: Moldando Corações e Mentes

O Estado Novo desenvolveu uma sofisticada máquina de propaganda política que rivalizava com os regimes totalitários europeus em eficiência e penetração social. O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), criado em 1939 sob a direção de Lourival Fontes, controlava rigorosamente todos os meios de comunicação e promovia ativamente a ideologia do regime.

A Rádio Nacional, estatizada em 1940, tornou-se o principal instrumento de comunicação do regime com as massas populares. O programa “A Hora do Brasil”, transmitido obrigatoriamente por todas as estações de rádio do país, disseminava diariamente a propaganda oficial disfarçada de informação e entretenimento.

O cinema foi amplamente utilizado para propaganda política através da produção de documentários e cinejornais que exaltavam as realizações do governo e promoviam o culto à personalidade de Vargas. A censura cinematográfica eliminava qualquer conteúdo crítico ao regime, enquanto incentivava produções que reforçavam os valores oficiais.

A imprensa escrita foi submetida a um rigoroso controle através da censura prévia, fechamento de jornais críticos e cooptação de jornalistas através de benefícios e ameaças. O DIP produzia e distribuía material jornalístico pré-fabricado que muitos jornais publicavam como se fosse produção própria.

Repressão e Terror: Os Instrumentos do Controle Social

O aparato repressivo do Estado Novo foi comandado pelo temível delegado Filinto Müller, chefe da polícia política que coordenava a repressão aos opositores do regime. A polícia política, reorganizada e profissionalizada, desenvolveu técnicas sofisticadas de investigação, infiltração e repressão que permitiam o controle efetivo da oposição.

A tortura tornou-se prática sistemática nos porões da polícia política, sendo utilizada não apenas para obter informações, mas também para intimidar e desencorajar a resistência. Os métodos empregados incluíam espancamentos, choques elétricos, afogamentos e outras técnicas que causavam sofrimento extremo aos prisioneiros.

O caso mais emblemático da crueldade do regime foi o tratamento dado a Olga Benário, companheira de Luís Carlos Prestes. Grávida, ela foi entregue ao regime nazista alemão em 1936, onde morreu no campo de concentração de Ravensbrück. Este ato representou não apenas uma violação dos direitos humanos, mas também uma demonstração da subordinação do regime Vargas aos interesses do fascismo internacional.

Modernização Econômica: Industrialização Sob Tutela Estatal

O Estado Novo promoveu uma significativa modernização da economia brasileira através da criação de empresas estatais, investimentos em infraestrutura e políticas industriais que estabeleceram as bases da industrialização nacional. A Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), criada em 1941, representou o símbolo desta estratégia de desenvolvimento.

A construção da Usina de Volta Redonda foi apresentada como demonstração da capacidade do Estado de promover o desenvolvimento econômico através do planejamento central e investimento público. O projeto, financiado parcialmente com recursos americanos, estabeleceu o padrão de industrialização baseado em empresas estatais e tecnologia importada.

A criação da Companhia Vale do Rio Doce em 1942 consolidou o controle estatal sobre recursos minerais estratégicos, particularmente o minério de ferro. Esta política de nacionalização de recursos naturais refletia tanto preocupações de segurança nacional quanto a concepção de que o desenvolvimento requeria forte intervenção estatal.

A Legislação Trabalhista: Direitos como Instrumentos de Controle

A consolidação da legislação trabalhista durante o Estado Novo, culminando na CLT de 1943, representou o aspecto mais duradouro e controverso do legado varguista. Embora tenha estabelecido direitos importantes como jornada de 8 horas, férias remuneradas, 13º salário e estabilidade no emprego, esta legislação seguiu uma lógica corporativista que subordinava os trabalhadores ao controle estatal.

O sistema sindical criado pela legislação varguista transformou os sindicatos em órgãos de colaboração com o governo, eliminando sua autonomia e capacidade de luta. O imposto sindical, contribuição obrigatória descontada de todos os trabalhadores, garantia a dependência financeira dos sindicatos em relação ao Estado, criando uma estrutura de controle que perdura até hoje.

A Justiça do Trabalho, criada em 1939, embora representasse um avanço na resolução de conflitos trabalhistas, funcionava dentro da lógica corporativista de harmonização entre capital e trabalho sob tutela estatal. Os juízes do trabalho eram nomeados pelo governo e orientados a buscar soluções conciliatórias que evitassem o conflito aberto.

A Segunda Guerra Mundial: Oportunismo Político e Alinhamento Internacional

A participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial representou uma das fases mais contraditórias do Estado Novo. Inicialmente simpatizante dos regimes fascistas europeus, Vargas negociou habilmente com ambos os lados do conflito, buscando maximizar as vantagens para o Brasil e seu governo.

A simpatia inicial pelo fascismo não era apenas ideológica, mas também prática. O modelo corporativista implementado no Brasil seguia diretamente as experiências italiana e alemã, e muitos técnicos e conselheiros do governo Vargas haviam estudado na Europa fascista. A propaganda do DIP utilizava técnicas e símbolos claramente inspirados nos regimes totalitários.

No entanto, as pressões americanas e as necessidades econômicas brasileiras gradualmente forçaram um alinhamento com os Aliados. Os Acordos de Washington de 1942 garantiram financiamento americano para a industrialização brasileira em troca do alinhamento político e fornecimento de matérias-primas estratégicas.

A entrada do Brasil na Segunda Guerra ao lado dos Aliados em 1942, após ataques de submarinos alemães a navios brasileiros, criou uma contradição fundamental no Estado Novo. Como justificar um regime autoritário lutando ao lado das democracias contra o fascismo?

A Força Expedicionária Brasileira: Democratização Forçada

O envio da Força Expedicionária Brasileira (FEB) para combater na Itália representou um marco na erosão do Estado Novo. Os soldados brasileiros, lutando ao lado de forças democráticas contra o fascismo, retornaram ao país com uma mentalidade incompatível com a ditadura interna.

A participação na guerra fortaleceu significativamente as Forças Armadas brasileiras, que adquiriram experiência de combate, modernizaram seu equipamento e desenvolveram uma consciência política mais aguçada. O contato com militares americanos e europeus expandiu os horizontes dos oficiais brasileiros e criou pressões por democratização.

A retórica da luta pela democracia na Europa tornava insustentável a manutenção da ditadura no Brasil. A propaganda oficial, que exaltava a luta contra o fascismo, contradizia diretamente as práticas autoritárias do próprio regime.

O Fim do Estado Novo: Democratização Controlada e Legado Duradouro

As Pressões pela Democratização (1943-1945)

A partir de 1943, o Estado Novo enfrentou pressões crescentes pela democratização que vinham de diversos setores da sociedade. A vitória dos Aliados na guerra fortalecia internacionalmente o modelo democrático, enquanto internamente crescia a oposição ao regime autoritário.

O Manifesto dos Mineiros de 1943, assinado por importantes lideranças de Minas Gerais, representou o primeiro desafio público significativo ao regime. O documento reivindicava o retorno à democracia e criticava o autoritarismo do Estado Novo, sinalizando que mesmo setores conservadores da sociedade começavam a questionar a ditadura.

A imprensa, gradualmente liberada da censura, intensificou a campanha pela democratização. Jornais como o Correio da Manhã e a revista O Cruzeiro tornaram-se porta-vozes da oposição democrática, criticando abertamente o governo e defendendo eleições livres.

A Estratégia de Saída: Controlando a Transição

Vargas demonstrou mais uma vez sua habilidade política ao perceber que a manutenção da ditadura tornava-se insustentável. Em lugar de resistir às pressões democráticas, optou por liderar o processo de transição, buscando manter controle sobre os desenvolvimentos políticos.

A Lei Constitucional nº 9 de fevereiro de 1945 convocou eleições para dezembro do mesmo ano e estabeleceu prazos para a elaboração de uma nova constituição. Esta decisão, aparentemente democrática, permitiu a Vargas manter-se no poder durante o período de transição e influenciar o processo eleitoral.

A criação do Partido Social Democrático (PSD) e do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) representou uma tentativa de perpetuar a influência varguista através do sistema partidário democrático. O PSD aglutinava os interventores e burocratas do Estado Novo, enquanto o PTB buscava mobilizar os trabalhadores urbanos beneficiados pela legislação social.

O Movimento Queremista: Manipulação Popular ou Apoio Genuíno?

O movimento queremista de 1945, que defendia a permanência de Vargas no poder com o slogan “Queremos Getúlio”, representou uma das manifestações mais controversas do populismo varguista. As grandes manifestações populares em apoio a Vargas demonstravam sua capacidade de mobilização, mas também revelavam os perigos da manipulação política.

O movimento foi organizado pelos aparatos do Estado Novo, utilizando a máquina pública, sindicatos oficiais e meios de comunicação controlados pelo governo. As manifestações, embora contassem com participação popular genuína, foram cuidadosamente orquestradas para criar uma aparência de apoio espontâneo.

A retórica queremista explorava o temor das classes populares de perder as conquistas sociais obtidas durante o Estado Novo. Vargas era apresentado como único garantidor dos direitos trabalhistas e protetor dos humildes contra as elites conservadoras.

A Deposição de Outubro de 1945: Fim de uma Era

A deposição de Vargas em 29 de outubro de 1945 pelo movimento militar liderado pelos generais Góes Monteiro e Eurico Gaspar Dutra encerrou o Estado Novo e abriu o caminho para a redemocratização. O movimento contou com apoio de setores oposicionistas que temiam uma perpetuação disfarçada da ditadura.

A facilidade da deposição demonstrava o grau de erosão do regime. Mesmo os setores militares que haviam apoiado o Estado Novo reconheciam que sua manutenção tornara-se impraticável. A ausência de resistência popular significativa revelava que o apoio a Vargas, embora real, não era suficiente para sustentar a ditadura contra a oposição organizada.

O Retorno Democrático (1951-1954): Populismo em Ação

A Campanha de 1950: Ressurreição Política Extraordinária

O retorno de Getúlio Vargas ao poder através de eleições democráticas em 1950 representou um dos fenômenos mais extraordinários da política brasileira. Apenas cinco anos após ser deposto como ditador, Vargas conseguiu mobilizar suficiente apoio popular para reconquistar a presidência pelo voto direto.

A campanha eleitoral de 1950 baseou-se na exploração hábil da nostalgia do período autoritário, particularmente entre as classes trabalhadoras urbanas que haviam se beneficiado da legislação social. O slogan “Ele voltou para fazer por vocês” sintetizava a estratégia de apresentar Vargas como defensor dos interesses populares contra as elites conservadoras.

O programa de governo apresentado na campanha combinava nacionalismo econômico, desenvolvimentismo e ampliação dos direitos sociais. A proposta de criação de uma empresa petrolífera estatal mobilizou sentimentos nacionalistas e consolidou o apoio de setores progressistas.

O Segundo Governo Vargas: Entre Expectativas e Limitações

O início do segundo governo Vargas foi marcado por grandes expectativas de transformação social e desenvolvimento econômico. O presidente retornava ao poder com legitimidade democrática e amplo apoio popular, condições que aparentemente favoreciam a implementação de reformas ambiciosas.

No entanto, o contexto político da década de 1950 era fundamentalmente diferente daquele dos anos 1930. A Guerra Fria criava pressões internacionais pela manutenção do alinhamento com os Estados Unidos, enquanto internamente a oposição conservadora controlava importantes posições no Congresso e na imprensa.

As limitações do sistema democrático brasileiro, com sua representação desproporcional e influência dos interesses rurais, dificultavam a aprovação de reformas progressistas. Vargas encontrava-se constrangido pelos mecanismos institucionais que anteriormente havia contornado através do autoritarismo.

O Nacionalismo Petrolífero: Auge e Contradições

A criação da Petrobras em 1953, após intensa campanha nacionalista sob o lema “O petróleo é nosso”, representou o auge da segunda presidência de Vargas. A decisão de estabelecer o monopólio estatal sobre a exploração petrolífera mobilizou amplo apoio popular e consolidou a imagem de Vargas como defensor da soberania nacional.

A campanha pela Petrobras utilizou técnicas de mobilização popular desenvolvidas durante o Estado Novo, incluindo manifestações de massa, propaganda radiofônica e articulação com sindicatos e organizações estudantis. O Centro de Estudos e Defesa do Petróleo e da Economia Nacional (CEDPEN) coordenou uma sofisticada campanha de opinião pública.

No entanto, a criação da Petrobras acirrou conflitos com interesses estrangeiros, particularmente americanos, e setores conservadores nacionais vinculados ao capital internacional. A oposição à política petrolífera articulou-se com outras críticas ao governo, criando um ambiente de crescente hostilidade política.

Crise Política e Isolamento Crescente

A partir de 1953, o governo Vargas enfrentou crescentes dificuldades políticas que gradualmente o isolaram e minaram sua capacidade de governar. A inflação crescente, dificuldades na balança comercial e pressões internacionais criavam um quadro econômico desfavorável.

A oposição conservadora, liderada pelo jornalista Carlos Lacerda através do jornal Tribuna da Imprensa, intensificou sistematicamente os ataques ao governo. Lacerda utilizava uma retórica virulenta que caracterizava Vargas como ameaça à democracia e aos valores ocidentais, explorando os temores anticomunistas da Guerra Fria.

O Exército, tradicionalmente base de apoio de Vargas, começou a manifestar inquietação com os rumos do governo. Oficiais conservadores viam com desconfiança as políticas nacionalistas e a aproximação com setores trabalhistas, temendo uma radicalização esquerdista.

A Crise Final e o Suicídio de 1954: Drama Nacional e Manipulação Póstuma

O Atentado da Rua Toneleros: Escândalo e Conspiração

O atentado da Rua Toneleros em 5 de agosto de 1954, que vitimou o major da Aeronáutica Rubens Vaz e estava dirigido contra Carlos Lacerda, expôs definitivamente a corrupção e a violência que permeavam o aparato governamental. A investigação do crime revelou o envolvimento de membros da guarda pessoal de Vargas, incluindo seu filho Lutero.

O escândalo forneceu à oposição a munição que buscava para intensificar os ataques ao governo. A imprensa explorou sistematicamente as revelações sobre corrupção na administração pública, criando um ambiente de desmoralização do governo.

A descoberta da “República do Galeão”, esquema de contrabando e corrupção no aeroporto do Rio de Janeiro comandado por Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal presidencial, completou o quadro de deterioração moral do governo. As evidências de enriquecimento ilícito e uso da máquina pública para benefícios pessoais contradiziam a imagem de probidade cultivada por Vargas.

O Ultimatum Militar: Cerco Final ao Poder

A pressão militar sobre Vargas intensificou-se dramaticamente após o atentado da Rua Toneleros. Oficiais das três Forças Armadas exigiam a renúncia do presidente, considerando que sua permanência no poder comprometia a honra e a estabilidade das instituições militares.

O “Memorial dos Coronéis”, documento assinado por oficiais do Exército que exigiam mudanças radicais no governo, representou o rompimento definitivo entre Vargas e sua base militar tradicional. A ausência de apoio das Forças Armadas tornava insustentável a manutenção no poder.

Os últimos dias de agosto de 1954 foram marcados por negociações desesperadas entre Vargas e lideranças militares e políticas buscando uma saída para a crise. As opções limitavam-se à renúncia ou deposição, perspectivas que Vargas considerava inaceitáveis para sua dignidade pessoal e legado político.

O Suicídio: Última Cartada Política

Na madrugada de 24 de agosto de 1954, Vargas tomou a decisão final que transformaria sua morte em instrumento de manipulação política. O suicídio no Palácio do Catete representou não apenas o fim de uma vida, mas a criação de um mito político que perduraria por décadas.

A carta-testamento deixada por Vargas constitui uma peça magistral de propaganda póstuma. O documento apresentava o presidente como vítima de “forças ocultas” e “interesses antinacionais”, invertendo habilmente a narrativa política e transformando o suicida em mártir.

A linguagem da carta explorava sistematicamente temas populistas: a luta entre povo e elites, a defesa dos humildes contra os poderosos, o sacrifício pessoal pelo bem comum. A frase “Deixo a vida para entrar na História” sintetizava a estratégia de transformar a morte em capital político duradouro.

A Comoção Popular: Resposta das Massas

A divulgação da morte de Vargas provocou manifestações populares espontâneas em todo o país, demonstrando o profundo impacto emocional que o presidente exercia sobre as classes trabalhadoras. As multidões que se reuniram nas ruas expressavam genuína dor e revolta contra os “inimigos” do presidente morto.

As manifestações incluíram ataques a jornais oposicionistas, deputados conservadores e símbolos do capital estrangeiro. A sede do jornal Tribuna da Imprensa foi depredada, enquanto Carlos Lacerda precisou se refugiar para escapar da fúria popular.

A reação das massas demonstrava tanto a eficácia da propaganda varguista quanto a existência de sentimentos populares genuínos de identificação com o presidente morto. A transformação de Vargas em mártir criou um capital político que seria explorado por décadas pelos herdeiros políticos do varguismo.

Análise Crítica do Legado Varguista: Entre Mito e Realidade

O Mito do “Pai dos Pobres”: Construção e Permanência

A construção da imagem de Vargas como “pai dos pobres” representa uma das operações ideológicas mais bem-sucedidas da história política brasileira. Esta imagem, cuidadosamente elaborada pela propaganda oficial e reforçada pela carta-testamento, conseguiu obscurecer os aspectos autoritários do varguismo e consolidar uma memória seletiva de seu governo.

A permanência deste mito explica-se por diversos fatores: a efetiva melhoria das condições de vida dos trabalhadores urbanos, o contraste com períodos posteriores de maior desigualdade, a ausência de alternativas políticas progressistas e a continuidade da estrutura sindical varguista.

No entanto, uma análise crítica revela as limitações e contradições desta imagem. Os direitos trabalhistas concedidos por Vargas foram apresentados como dádivas do governo, não como conquistas legítimas dos trabalhadores. Esta retórica da outorga despolitizou as relações de trabalho e criou uma cultura política baseada na gratidão aos governantes.

Além disso, os benefícios da legislação social varguista restringiram-se aos trabalhadores urbanos formais, excluindo completamente os trabalhadores rurais que representavam a maioria da população brasileira. Esta “cidadania regulada” criou uma hierarquia de direitos que reproduzia e legitimava desigualdades sociais estruturais.

Modernização Conservadora: Mudança sem Transformação

O projeto de modernização implementado por Vargas seguiu o padrão que o cientista político Barrington Moore Jr. classificou como “revolução pelo alto”. As transformações econômicas e sociais foram promovidas sem alterar fundamentalmente as estruturas de poder existentes, resultando em uma modernização que preservava privilégios das elites tradicionais.

A industrialização promovida durante o período Vargas, embora importante para o desenvolvimento econômico, foi financiada principalmente através da exploração do setor agrícola e da compressão salarial dos trabalhadores urbanos. O modelo de desenvolvimento adotado reproduziu o padrão histórico brasileiro de concentração de renda e exclusão social.

A modernização varguista caracterizou-se pela combinação de avanços técnicos com manutenção de estruturas autoritárias. A eficiência administrativa, a industrialização e a legislação social conviviam com a repressão política, a censura e o controle social. Esta contradição revelava a natureza conservadora da modernização promovida.

O Corporativismo Brasileiro: Controle Disfarçado de Proteção

O sistema corporativista implementado por Vargas representou uma adaptação criativa dos modelos fascistas europeus às condições brasileiras. O objetivo era integrar as classes trabalhadoras em estruturas controladas pelo Estado, eliminando o conflito de classes através da colaboração forçada entre capital e trabalho.

A estrutura sindical varguista, baseada no sindicato único, imposto sindical e controle estatal, funcionou como eficiente mecanismo de cooptação e controle. Os sindicatos oficiais prestavam serviços aos trabalhadores mas não os representavam politicamente, servindo antes como instrumentos de transmissão das políticas governamentais.

Este modelo corporativista criou uma cultura política caracterizada pela dependência em relação ao Estado e pela despolitização das relações sociais. Os trabalhadores aprenderam a buscar soluções para seus problemas através de canais oficiais controlados pelo governo, em lugar de desenvolver organizações autônomas capazes de defender seus interesses.

Autoritarismo e Democracia: A Herança Ambígua

O legado autoritário do varguismo transcendeu os períodos ditatoriais para influenciar profundamente a cultura política brasileira. A concepção de que a democracia constitui obstáculo à eficiência governamental e ao desenvolvimento econômico tornou-se recorrente na política brasileira, justificando diversos episódios autoritários posteriores.

A tradição varguista de concentração de poder no Executivo, marginalização do Legislativo e subordinação do Judiciário criou precedentes que foram utilizados por governos posteriores para justificar práticas autoritárias. A noção de “estado de exceção” como solução para crises políticas tornou-se parte integrante da cultura política nacional.

Simultaneamente, o varguismo criou expectativas populares de proteção social e direitos trabalhistas que se tornaram parâmetros para avaliar governos posteriores. Esta herança dualautoritarismo combinado com direitos sociaiscaracteriza até hoje a política brasileira.

O Varguismo Após Vargas: Herança Política Duradoura

Os Partidos Varguistas: PSD e PTB na Democracia

A criação do Partido Social Democrático (PSD) e do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) representou a tentativa bem-sucedida de Vargas de perpetuar sua influência através do sistema partidário democrático. Estes partidos dominaram a política brasileira entre 1945 e 1964, demonstrando a durabilidade do legado varguista.

O PSD aglutinava os interventores, burocratas e políticos locais que haviam colaborado com o Estado Novo. Sua estrutura reproduzia a máquina administrativa varguista, combinando eficiência técnica com práticas clientelistas. O partido controlava importantes posições no aparato estatal e mantinha vínculos com setores empresariais beneficiados pelas políticas desenvolvimentistas.

O PTB, por sua vez, mobilizava os trabalhadores urbanos através da estrutura sindical criada durante o varguismo. O partido explorava a memória das conquistas sociais do período Vargas e apresentava-se como único defensor legítimo dos direitos trabalhistas. Sua retórica populista combinava nacionalismo com reformismo social.

Juscelino Kubitschek: Varguismo Democrático

A presidência de Juscelino Kubitschek (1956–1961) representou, em muitos aspectos, uma continuidade simbólica e política do legado varguista sob as regras da democracia liberal. Embora não tenha sido diretamente ligado ao Estado Novo, JK foi filiado ao PSD — herdeiro político da máquina estatal varguista — e cultivava uma imagem conciliadora entre desenvolvimento econômico e estabilidade institucional.

Seu ambicioso Plano de Metas, que incluía a construção de Brasília, espelhava a tradição varguista de centralização do planejamento estatal e de grandes projetos nacionais. A proposta de “cinquenta anos em cinco” evocava o nacionalismo desenvolvimentista de Vargas, agora revestido de otimismo democrático e retórica tecnocrática.

Entretanto, Juscelino também se diferenciava do varguismo em aspectos centrais. Seu governo buscou maior abertura ao capital estrangeiro, especialmente americano, numa tentativa de modernizar o parque industrial sem o grau de estatismo observado no Estado Novo. Ainda assim, a coexistência entre populismo simbólico, crescimento econômico planejado e autoritarismo residual continuava a marcar a política brasileira.

João Goulart e o Varguismo em Crise

O vice-presidente de JK e posterior presidente João Goulart (1961–1964) foi a encarnação mais direta do varguismo clássico, especialmente no que se refere à vinculação com o movimento trabalhista. Herdeiro político de Vargas, Jango tentou resgatar os compromissos populistas e reformistas do seu mentor, promovendo pautas como a reforma agrária, a reforma bancária e o controle de remessas de lucros ao exterior.

Contudo, o contexto histórico já não era mais o mesmo. A Guerra Fria acirrava os antagonismos ideológicos, e a elite política e militar brasileira, apoiada pelos Estados Unidos, via nas reformas de Jango uma ameaça ao status quo. O varguismo, que por décadas funcionara como amortecedor social e instrumento de controle, agora parecia radical demais para os conservadores e tímido demais para os progressistas.

O golpe militar de 1964, que depôs Jango, representou o fim do ciclo político varguista. A nova ordem instaurada rompeu com a retórica nacionalista e social trabalhista, promovendo um projeto de modernização conservadora baseado na repressão, abertura ao capital externo e desmobilização sindical.

O Varguismo como Fantasma Político

Mesmo após a queda de seus herdeiros diretos, o varguismo seguiu como referência, fantasma ou promessa na política brasileira. Durante a ditadura militar, o regime buscou incorporar elementos simbólicos do legado de Vargas — como o desenvolvimento estatal — ao mesmo tempo que desmontava os mecanismos de representação popular e participação sindical criados por ele.

Nos anos 1980, com a redemocratização, partidos como o PDT, liderado por Leonel Brizola, tentaram resgatar o varguismo em chave progressista, defendendo a soberania nacional e os direitos sociais. No entanto, o novo contexto neoliberal e a crise do trabalhismo internacional reduziram significativamente a eficácia eleitoral dessa proposta.

Na Nova República, o mito de Vargas continuou a ser mobilizado retoricamente por diferentes atores — da esquerda ao centro — como símbolo de um Estado forte, capaz de proteger os fracos e promover o desenvolvimento. Mas o modelo de corporativismo estatal e populismo carismático já não parecia compatível com a lógica de um mundo globalizado e financeirizado.

Conclusão: Getúlio Vargas e a Construção Contraditória do Brasil Moderno

A trajetória de Getúlio Vargas é, ao mesmo tempo, um retrato da modernização brasileira e um espelho de suas contradições estruturais. Sua figura carrega o paradoxo de ter promovido avanços sociais significativos ao mesmo tempo em que consolidou práticas autoritárias duradouras. Vargas não apenas moldou o Estado brasileiro — ele definiu os contornos da cultura política nacional, ainda marcada pela tensão entre proteção estatal e repressão política, entre populismo e exclusão.

Seu legado perdura não apenas nas instituições criadas, mas na memória coletiva de um Brasil dividido entre a necessidade de um Estado forte e o anseio por liberdade. Interpretar Vargas como herói ou vilão é reduzi-lo; compreendê-lo como síntese de um país em formação é o primeiro passo para refletir criticamente sobre nosso presente.

E você? Como avalia o impacto de Getúlio Vargas na história do Brasil? Deixe seu comentário abaixo e participe dessa discussão que ainda ecoa no século XXI.

Qual é sua opinião sobre o legado controverso de Getúlio Vargas? Compartilhe nos comentários sua visão sobre como o getulismo ainda influencia a política brasileira contemporânea.

FAQ – Perguntas Frequentes sobre Getúlio Vargas

Quem foi Getúlio Vargas e por que é considerado uma figura controversa?

Getúlio Vargas foi presidente do Brasil em dois períodos (1930-1945 e 1951-1954), sendo conhecido como “pai dos pobres”. É controverso porque combinou avanços sociais importantes, como a criação da legislação trabalhista, com práticas autoritárias, incluindo censura, repressão política e golpe de Estado em 1937.

O que foi o Estado Novo de Getúlio Vargas?

O Estado Novo (1937-1945) foi o período ditatorial do governo Vargas, iniciado com um golpe de Estado. Caracterizou-se pela centralização do poder, supressão de direitos políticos, censura, propaganda governamental e repressão aos opositores, mas também pela modernização econômica e ampliação de direitos trabalhistas.

Quais foram as principais realizações sociais de Getúlio Vargas?

As principais realizações incluem a criação da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), estabelecimento da jornada de 8 horas, férias remuneradas, 13º salário, criação da Justiça do Trabalho e expansão dos direitos trabalhistas. No entanto, estes direitos foram limitados aos trabalhadores urbanos formais, excluindo os rurais.

Por que Getúlio Vargas se suicidou em 1954?

Vargas se suicidou em 24 de agosto de 1954 devido às intensas pressões políticas, incluindo escândalos de corrupção como o atentado da Rua Toneleros, oposição militar e civil crescente, e ameaças de deposição. Sua carta-testamento transformou o suicídio em instrumento político de mobilização popular.

Como o populismo de Vargas influencia a política brasileira atual?

O populismo varguista criou um padrão político baseado em liderança carismática, retórica anti-establishment, promessas de proteção aos “humildes” e relação direta com as massas. Este modelo influencia diversos políticos contemporâneos que adotam estratégias similares de mobilização popular e concentração de poder.

Qual foi o impacto econômico do governo Vargas no Brasil?

Vargas promoveu significativa modernização econômica através da criação de empresas estatais (CSN, Vale, Petrobras), industrialização, desenvolvimento de infraestrutura e fortalecimento do papel do Estado na economia. Estabeleceu as bases da industrialização brasileira, mas com custos sociais elevados e concentração de renda.

O que foi a Revolução de 1930 liderada por Vargas?

A Revolução de 1930 foi o movimento que levou Vargas ao poder, oficialmente apresentado como ruptura com a “República Velha”. Na prática, representou uma reorganização das elites regionais descontentes com a hegemonia paulista-mineira, mais do que uma verdadeira transformação social ou democrática.

Como Vargas controlava os trabalhadores e sindicatos?

Vargas criou um sistema corporativista que subordinava os sindicatos ao Estado através do Ministério do Trabalho. Os sindicatos oficiais funcionavam como órgãos de colaboração governamental, recebendo recursos públicos em troca de apoio político, eliminando a autonomia do movimento operário e substituindo a luta de classes pela colaboração tutelada.

Quais foram os aspectos mais autoritários do governo Vargas?

Os aspectos mais autoritários incluem o fechamento do Congresso em 1937, censura sistemática, criação de polícia política, tortura e prisão de opositores, controle total dos meios de comunicação, propaganda oficial obrigatória e entrega de perseguidos políticos a regimes estrangeiros, como o caso de Olga Benário.

Por que Vargas ainda é popular entre alguns brasileiros?

A popularidade persiste devido à memória das conquistas sociais (direitos trabalhistas), à construção de sua imagem como “protetor dos humildes”, ao contraste com períodos de maior desigualdade social posterior, e à eficácia de sua estratégia de comunicação política, especialmente a carta-testamento que o vitimizou politicamente.

 

Fernando Rocha

Fernando Rocha, formado em Direito pela PUC/RS e apaixonado por história, é o autor e criador deste site dedicado a explorar e compartilhar os fascinantes acontecimentos do passado. Ele se dedica a pesquisar e escrever sobre uma ampla gama de tópicos históricos, desde eventos políticos e culturais até figuras influentes que moldaram o curso da humanidade."

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