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A Gravidez na Era Viking: Estudo Desafia Visões Tradicionais

Um estudo inovador conduzido por especialistas das Universidades de Nottingham e Leicester trouxe novas perspectivas sobre a gravidez durante a Era Viking (c. 750–1050 d.C.), destacando tanto as representações simbólicas de mulheres grávidas quanto as duras realidades enfrentadas por mães e recém-nascidos. Liderada pela Dra. Marianne Hem Eriksen, da Universidade de Leicester, e pela Dra. Katherine Marie Olley, da Universidade de Nottingham, a pesquisa, publicada na Cambridge Archaeological Journal sob o título “Womb Politics: The Pregnant Body and Archaeologies of Absence”, é a primeira análise detalhada da gravidez nesse período histórico. Combinando evidências arqueológicas, linguísticas e literárias, o estudo revela a complexidade da experiência da gravidez e desafia narrativas tradicionais sobre gênero e corpo na sociedade viking.

Representações da Gravidez: Linguagem e Literatura

Na literatura em nórdico antigo, a gravidez é descrita por meio de termos poéticos e evocativos que refletem diferentes concepções do corpo grávido. Expressões como “barriga cheia” (bellyfull), “sem luz” (unlight) e “não caminhar sozinha” (to walk not a woman alone) sugerem tanto a transformação física quanto a dimensão relacional da gestação. Esses termos indicam que a gravidez era vista como uma experiência corporal intensa, mas também como um processo que conectava a mulher a redes sociais e familiares mais amplas.

As sagas islandesas, embora compostas séculos após a Era Viking, oferecem vislumbres de como as mulheres grávidas eram percebidas. Em Eirik the Red’s Saga, Freydís Eiríksdóttir, grávida e incapaz de fugir de um ataque, enfrenta seus agressores de forma destemida, brandindo uma espada contra o próprio peito nu, o que os afugenta. Em outra narrativa, The Saga of the People of Laxardal, um feto ainda no útero é descrito como destinado a vingar seu pai, já integrado em dinâmicas de vingança e parentesco antes mesmo de nascer. Essas histórias mostram que, pelo menos na imaginação literária, as mulheres grávidas podiam ser agentes ativos, longe de corpos passivos ou fragilizados.

A Singularidade da Iconografia

A iconografia viking raramente retrata a gravidez, tornando uma descoberta em Aska, na Suécia, particularmente notável. Um pingente de prata do século X, encontrado em um túmulo de uma mulher possivelmente identificada como uma völva (vidente ou especialista em rituais), mostra uma figura feminina com barriga protuberante, sugerindo gravidez avançada. A figura, com braços envolvendo o ventre e possivelmente usando um elmo com protetor nasal, desafia estereótipos de passividade. A riqueza do túmulo, que incluía objetos como um cajado de ferro, animais e outros pingentes, sugere que a mulher ocupava uma posição de destaque, talvez ligada a práticas espirituais. Essa representação única levanta questões sobre como a gravidez era valorizada em contextos rituais e marciais, sugerindo que mulheres grávidas podiam ser associadas a poder e agency.

A Ausência no Registro Arqueológico

Apesar da alta mortalidade obstétrica estimada para a Era Viking, o registro arqueológico revela uma surpreendente escassez de sepultamentos de mães e bebês juntos. Entre milhares de sepulturas escavadas na Escandinávia e na diáspora viking, apenas 14 casos potenciais de sepultamentos conjuntos de mulheres adultas e fetos ou recém-nascidos foram identificados. Essa raridade contrasta com a expectativa de que a morte durante o parto fosse comum, sugerindo práticas mortuárias diferenciadas. Bebês, em geral, são sub-representados nos cemitérios vikings, com alguns aparecendo em contextos domésticos, o que levanta questões sobre o destino de muitos recém-nascidos.

A pesquisa sugere que a gravidez e os fetos podem não ter sido considerados uma unidade simbiótica (motherfetus) no momento da morte. Em vez disso, as comunidades vikings podem ter tratado mães e fetos de forma separada, seja por diferenças ontológicas no status dos recém-nascidos, seja por práticas culturais que não priorizavam o sepultamento conjunto. A possibilidade de que fetos fossem usados como objetos rituais ou não recebessem sepultamento formal reforça a ideia de que a gravidez era um fenômeno carregado de significados políticos e sociais.

Womb Politics: A Política do Útero

O estudo introduz o conceito de womb politics (política do útero) para destacar como a gravidez era um campo de disputas de poder. Em sociedades vikings hierárquicas, a gravidez de mulheres escravizadas era vista como um “defeito” que reduzia seu valor de mercado, e os filhos de pessoas subordinadas pertenciam a seus proprietários. Essas leis, embora documentadas em textos pós-viking, sugerem que a gravidez podia expor mulheres a riscos e exploração, especialmente em contextos de desigualdade.

Por outro lado, a gravidez também era essencial para a reprodução social, econômica e política. A continuidade de linhagens e a formação de alianças dependiam do controle sobre corpos grávidos, especialmente entre as elites. A pesquisa argumenta que a gravidez nunca foi um fenômeno neutro, mas sim um processo profundamente político, cujas implicações ressoam até hoje em debates sobre autonomia corporal e direitos reprodutivos.

Desafios à Narrativa Tradicional

A ausência de corpos grávidos no registro arqueológico e iconográfico não é apenas uma questão de preservação, mas um processo ativo de absence-making (tornar ausente). A pesquisa sugere que a marginalização da gravidez na arqueologia reflete vieses androcêntricos que priorizam narrativas de guerra, comércio e poder masculino. Ao centrar a gravidez como um fenômeno ontológico e político, o estudo desafia a trivialização de corpos femininos e propõe uma nova lente para entender as sociedades do passado.

A figura de Freydís, a imagem da völva grávida e as poucas evidências de sepultamentos conjuntos mostram que a gravidez na Era Viking era multifacetada, envolvendo tanto vulnerabilidade quanto resistência. Esses achados convidam a arqueologia a repensar corpos marginalizados e a reconhecer que a política não se limita a campos de batalha, mas também se manifesta nos processos vitais que sustentam a sociedade.

Conclusão

Ao explorar a gravidez na Era Viking, este estudo não apenas ilumina um aspecto pouco conhecido da sociedade escandinava, mas também propõe uma abordagem teórica mais ampla para a arqueologia. Conceitos como motherfetus e womb politics oferecem ferramentas para investigar a gravidez em outros períodos e regiões, destacando sua centralidade nas dinâmicas sociais e políticas. Ao tornar “estranho” o que parece familiar, a pesquisa revela o potencial dos corpos grávidos para reescrever narrativas históricas, dando voz a experiências que, por muito tempo, foram silenciadas.

Fernando Rocha

Fernando Rocha, formado em Direito pela PUC/RS e apaixonado por história, é o autor e criador deste site dedicado a explorar e compartilhar os fascinantes acontecimentos do passado. Ele se dedica a pesquisar e escrever sobre uma ampla gama de tópicos históricos, desde eventos políticos e culturais até figuras influentes que moldaram o curso da humanidade."

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